Experiente ator de cinema, com mais de 12 filmes em seu currículo, além de atuar na televisão e no teatro, Caco Ciocler desempenha o papel de Miguel, um rapaz de classe média no olho do furacão dos anos 70 durante a ditadura militar. Liderança entre os presos políticos na Ilha Grande, Miguel consegue através de uma greve de fome melhores condições de vida na cadeia. Depois de uma fase de ótimas relações com os presos comuns, acentuadas por sua relação pessoal com Jorginho (Flavio Bauraqui), está no centro do conflito que se estabelece quando o número de presos comuns na galeria aumenta. Neste momento, diversas questões levantadas pelos presos políticos começam a ser colocadas em cheque, assim como sua amizade com Jorginho.



Como você construiu o Miguel, seu personagem em "Quase Dois irmãos"?

O trabalho do ator no cinema vem junto com as filmagens, se constrói no set. Se o ator está muito rígido com o que pensa antes, sofre mais do que precisaria. O que acho mais interessante no trabalho para cinema é o filme ser um quebra cabeça, nada é filmado em ordem cronológica. Então, o tom que você dá ao personagem em determinada cena, vai determinar a trajetória dele para o resto do filme. Esse processo é muito instigante.

Nesse trabalho com a Lúcia Murat houve muita solicitação da minha contribuição como ator. Foi um trabalho de parceria em cada cena. Para ela, o roteiro é um mero guia, por isso, foi impressionante como as cenas se transformaram, foi um processo orgânico. A Lúcia não tinha um filme pronto na cabeça. Ela não pediu simplesmente ao elenco que representasse a história que tinha na cabeça. A direção estava a todo o momento muito aberta, e nesse sentido foi um trabalho interessante de construção conjunta de personagem.

Como você descreveria o Miguel?

Eu fui responsável por apenas 1/3 desse personagem. Têm outros dois atores responsáveis pela criação dessa vida. Procurei dar ao Miguel uma gradação tanto cronológica quanto de intenção. Ele começa um cara radical, obstinado e seguro de suas idéias. Depois de dois anos na prisão, ele continua com seus ideais, mas acho que é um ideal mais amadurecido, mais cansado talvez. O que mais me intrigou nessa história é o fato de alguém dedicar boa parte da vida a uma causa, e essa causa ter acabado.

Esse filme teve um aspecto muito especial que foi o improviso. Quando isso ocorre e o espaço de criação é repartido com os atores, assusta um pouco. O grande trunfo da Lúcia foi entender que o filme só aconteceria se o espaço da criação corresse mais solto.

Posso dizer que nunca me senti tão responsável por um filme, tão co-autor assim. Eu me sinto realmente dono do filme. Acho a Lúcia extremamente democrática, sempre aberta a todo tipo de interferência, sugestão, comentário, crítica. Para mim, esse foi o grande barato do "Quase Dois irmãos", foi realmente ter me sentido muito responsável por ele.

Como você percebe a época que seu personagem vive no filme?

O filme fala de uma época que, para mim, sempre foi muito instigante. Em 1970 eu estava nascendo, minha família não teve contato direto com essa história. Eu nunca ouvi essa história em casa. Então, quando eu comecei a ouvir sobre tudo isso, o que mais me instigou foi como essas pessoas dedicaram suas vidas e,de repente, esse sonho mundial morre. Como foi para essas pessoas ver esse sonho morto eu acho estranho, esse sonho não morreu, mas ele pensa assim né?. Essa é até a parte que o Werner Schuneman assume no filme. Isso foi realmente o que mais me intrigou, como essas pessoas conseguiram se conformar e se adaptar numa sociedade completamente adversa ou avessa a tudo aquilo que eles lutaram durante anos.

Acho que o filme tem também uma função social: Contar a história para além das pessoas que a viveram, contar para as novas gerações. Contar que houve um grupo de pessoas que acreditava e que chamava para si a responsabilidade de mudar esse país. Esse filme conta um pouco da história do Brasil e levanta uma questão que esta ficando cada vez mais difícil de lidar que é a violência. "Quase Dois Irmãos" fala do grande abismo social que nós criamos e só agora vemos seus resultados assustadores. O filme fala dessa divisão, desse desencontro,pelo qual hoje estamos pagando um preço altíssimo. Acho que, além de tudo, o filme é muito importante para a época em que a gente está vivendo.

O que fica de mais forte, para você, desse personagem e do trabalho no filme?

A Lúcia me deu um filme que ela fez sobre ex-presidiárias e minha intuição sobre o sentimento dos presos políticos se confirmou: de como foi duro, toda a tortura, algo quase inimaginável para a minha geração. Acho que por isso fiquei tão encantado com o jeito democrático dela de atuar no set. É um universo tão próprio, pelo fato dela ter vivido isso tudo, que deixar na nossa mão é um exercício difícil. Foi muito bonito ver isso na Lúcia.

Como ator, também foi uma honra o trabalho com os atores do "Nós do Morro". Eles têm uma capacidade de improvisação impressionante. Foi uma aula. Às vezes a Lúcia deixava um take rolar e se dependesse deles, esse take não tinha fim. Isso pra mim foi muito importante. Contracenar com o Flávio Bauraqui também foi ótimo. Eu precisava ter uma cumplicidade com o Flavio muito forte. Lembro-me que teve um dia, nos ensaios, em que a gente saiu pra tomar um chá e aí tivemos uma conversa muito bonita. O Flavio me contou um pouco da estória dele e eu contei um pouco da minha. Foi muito comovente, acho que a gente conseguiu trazer isso pro filme. É um ator que eu admirava muito desde o "Madame Satã". Esse filme foi um encontro muito feliz em todos os aspectos. O Jacob também fez uma câmera muito gostosa para o ator, uma câmera solta que deixa a gente muito à vontade em cena. Eu tenho a sensação de ter feito um grande filme. Um filme com muito amor, com muita dedicação de todo mundo. E ainda, contando uma estória linda. Acho o roteiro primoroso, falando de uma época muito recente que as pessoas não têm acesso. Fazer esse personagem faz com que eu volte para a história com uma outra cabeça. Acho que quando se aprende na escola, você é um adolescente, preocupado com outras coisas. Poder retomar a história do Brasil com a cabeça que eu tenho hoje, re-entender esse processo todo está sendo muito bacana.