Com enorme bagagem no teatro, Flávio Bauraqui tornou-se conhecido no mundo cinematográfico com o filme Madame Satã, onde interpretava o travesti Tabu. Em "Quase Dois Irmãos", numa interpretação radicalmente oposta, faz Jorginho, nos anos 70, preso comum que é colocado na galeria dos presos políticos na Ilha Grande. Amigo de infância de Miguel (Caco Ciocler), cujo pai, jornalista, gostava de samba e de subir o morro para prestigiar os sambistas nos anos 50, retrata através dessa amizade a possibilidade do encontro entre a favela e a classe média no Rio. Mas é também o centro do conflito quando a utopia é colocada em xeque. Vencedor do prêmio de melhor ator do Festival do Rio por esse papel.



Fale da trajetória do seu personagem em "Quase Dois Irmãos".

O Jorginho tem uma trajetória definida, um desenho muito interessante. Ele é bandido e carismático e tem um bom humor, apesar do cotidiano duro em que vive. Acho que quando se está preso, chega uma hora em que nada mais nos surpreende. Eu já passei fome e sei muito bem como é. No teu cotidiano, você já sabe que amanhã não vai ter o que comer, é isso e ponto final. Então, esse aspecto cruel da vida do Jorginho, eu conheço bem.

No começo do filme, ele é apenas um assaltante de banco, sem nenhum esquema de organização. Quando chega no presídio, se depara com todas aquelas pessoas (na cabeça dele, loucos) que fizeram universidade e estão presos com umas idéias estranhas de greve de fome. Mas Jorginho percebeu que havia algo mais profundo do que isso, como se houvesse um código de honra: não era permitido bater nos presos, usar drogas, estuprar. Nesse momento, e com a convivência com Miguel, ele inicia sua transformação e, sutilmente, começa a incorporar as idéias dos chamados “subversivos”.

Acho que o Jorginho começa com um perfil mais ingênuo, sem ter muita noção do que os presos políticos representam. Mas, o personagem cresce junto com a história, se caracteriza como um líder, o que culmina no momento do racha, onde Jorginho e Miguelzinho se separam. Aí, Jorginho se fortalece. Ele mata, vira um bandido com toda sua gangue. Acho que o muro representa mais do que um racha definitivo entre os presos, é também a ruptura da amizade com Miguelzinho.

Apesar de muito jovem, você tem uma carreira bastante ativa no cinema. "Quase Dois Irmãos" é seu segundo filme. Cinema é realmente o que faz a sua cabeça?

Fiquei muito feliz pelo fato da Lúcia ter me dado essa chance. Depois que fiz "Madame Satã", fiquei um pouco rotulado por aquele personagem. Achavam que eu só podia fazer travesti. E a Lúcia me deu esse crédito. Espero aprender muito ainda no cinema, é como uma escola para mim onde se aprende um pouco a cada dia. Nesse sentido o Jorginho foi um presente para mim.

Acho que o Jorginho é, de certa maneira, complementar o meu personagem no "Madame Satã", apesar de ser completamente distante da minha realidade, pois eu nunca fui preso. Mas tem um paralelo entre o Flavio e o Jorginho, que é o fato de serem negros. Conheço bem essa barreira social, quase que intransponível. Vivi de perto essa realidade quando cheguei ao Rio de Janeiro em 1993. Tive que ficar escondido e morando de favor, pegando comida na porta de serviço da casa onde minha irmã trabalhava como doméstica. Então, acho que foi isso que me ligou a Jorginho. É uma realidade muito dura, e eu descobri com Jorginho que pode ser pior ainda. Acho que fica isso pra eu pensar. Com o filme, eu tive contato com os presos, essas pessoas que ficam lá amontoadas e esquecidas pelo resto da sociedade.

Como é seu processo de construção de personagem?

Ainda sou um bebê no cinema. Acho que toda minha técnica vem do teatro, que dá muita concentração. No "Madame Satã" aprendi como funciona o processo do ator do set. Acho que a gente tem que estar no estado da personagem por inteiro, se entregar realmente. Às vezes, eu saia da cena, ficava correndo do lado de fora, para poder voltar com o corpo inteiro, ofegante e com o sangue circulando. Isso dá mais credibilidade à cena.

Esse personagem tem muito a ver comigo, com a minha trajetória de vida. Já passei por muitas dificuldades. Sei como é estar do outro lado, só que tenho lutado e conseguido conquistar diversas coisas boas que hoje me fortalecem. Acho que é por isso que eu e Jorginho nos aproximamos. Os dois já passaram pelo pior. O Jorginho do filme, num certo sentido também conquistou muito durante a vida.